Kurutta ippêji (Japan, 1926)


Sempre que pensava em assistir a um filme clássico, por mais que soubesse que assistir a obras consagradas seria de grande valia para minha formação acadêmica e pessoal, tinha certa preguiça. Preguiça da tela em preto e branco, dos personagens mudos e da aura canônica que os acompanha. Contudo, foi só entrando de cabeça nesse universo – que, obviamente, não descobri ainda inteiramente – que pude perceber a sua importância. Nesse sentido, empresto de Calvino a frase que intitula um dos seus livros teóricos e coloco a seguinte questão: por que ver os clássicos?

Em meio a discussões sobre o caráter transfronteiriço e multicultural da atualidade, sobre centro e periferia, deslocamento e desterritorialização – com as quais simpatizo, diga-se de passagem –, falar sobre cânones e clássicos pode soar um pouco estranho. 

Assim como considero muito importante voltar o olhar para aquilo que está sendo produzindo fora do centro – será que hoje é essa a discussão que devemos ter? –, conhecer a produção que deu origem a muitos dos jeitos e trejeitos da linguagem cinematográfica parece-me fundamental para direcionar um olhar mais atento àquilo que foi e está sendo produzido pelo cinema. 

Diferentemente de outras formas visuais, os (bons) filmes não se perdem no tempo. Em outras palavras, seu conteúdo não precisa ser atualizado, o importante é que este seja atual e que seus questionamentos e implicações, por mais antiga que possa ser a data de publicação da obra, ainda façam sentido para os telespectadores de épocas mais atuais. Desse modo, gosto da distinção feita por Rildo Cosson sobre o que é contemporâneo e o que é atual: as obras contemporâneas são aquelas publicadas no presente e as atuais, aquelas que possuem significado hoje, mesmo que tenham sido produzidas no passado. 


Ora, diante disso, o que são os clássicos senão obras atuais? Nesse sentido, Kurutta Ippēji (Uma Página de Loucura – 1926), do diretor Teinosuke Kinugasa, é incrivelmente atual. Por meio de cortes e movimentos de câmera, o filme conta a história de um homem que vai trabalhar como zelador em um manicômio para poder ficar ao lado de sua esposa. É principalmente por meio desse personagem que percebemos a loucura do lugar, que, aliada, ou intensificada, pelos movimentos de uma bailarina que também está ali confinada, passa a envolvê-lo a ponto de, no final, abarcá-lo completamente. 

Kurutta Ippēji exprime uma ruptura, típica dos movimentos vanguardistas do início do século XX, com a narrativa clássica da época e apresenta, como estrutura nodal, uma forma de se representar o subconsciente e a loucura e, aliando as duas coisas, uma maneira de vermos o mundo através da alucinação e do delírio. Uma cena emblemática, nesse sentido, é aquela em que a já citada bailarina nos é mostrada pelo olhar de vários dos internos do manicômio: à medida que a câmera focaliza em um paciente e se volta à dançarina, suas roupas mudam e ela chega, até mesmo, a transformar-se em um espectro em movimento.

É dessa cena em diante que a loucura toma conta também do personagem central, o zelador, que tenta desesperadamente fazer com que sua mulher fuja dali. A mulher não entende seu desespero e, com uma vontade completamente oposta, não deseja sair do manicômio, ficando realmente perturbada com a insistência daquele que já não mais reconhece como seu marido. O zelador, por sua vez, por não conseguir tirá-la dali, sucumbe ao delírio contagiante dos internados e à ideia de permanecer no local. 


Sua redenção torna-se ainda mais clara quando entrega, já nos últimos momentos do filme, diversas máscaras Nô – máscaras utilizadas no teatro japonês – aos internados. Em uma cena que representa sua total imersão no universo caótico do manicômio, o personagem, por meio do que entendemos ser sua imaginação, distribui as máscaras aos pacientes que, um a um, colocam-nas, proporcionando às suas faces maníacas um semblante de paz, alegria e contentamento. Talvez seja este o final feliz encontrado pelo zelador para o seu próprio fim: já que não conseguiu resgatar sua mulher da loucura, uniu-se a ela mascarando sua nova realidade.

Carolina Becker

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