American Hustle (USA, 2013)

Confiança não é apenas a base de todo e qualquer tipo de relacionamento humano. Confiança é também um diferencial fixado em nós desde tempos muito remotos e reforçado por séculos, representando a fundação do que convencionalmente chamamos de sociedade. Aristóteles, em sua obra "A Política", já dizia que o homem é um animal político – não no sentido comumente utilizado de política institucional, mas no que diz respeito à essência da política: um conjunto de regras que estabelecem o bem estar e as vantagens de se viver em comunidade. Como têm mostrado alguns especialistas, quando falamos em outras espécies de primatas o conceito de confiança mostra traços extremamente sofisticados.



Nesse sentido, acho interessante mencionar um experimento realizado com dois pequenos macacos que foram separados em jaulas distintas, as quais possuíam, contudo, uma pequena comunicação. Em uma das jaulas havia uma caixa com nozes e na outra um instrumento que possibilitava a abertura da caixa. Ora, para que o macaco que estava na jaula com a caixa pudesse abri-la, era preciso que o macaco que possuía a ferramenta lhe entregasse o instrumento pela janela de comunicação. E foi justamente o que aconteceu, revelando que, de alguma forma sofisticada e pré-humana, o macaco que entregou o instrumento estabeleceu um código de dependência e expectativa e depositou toda a confiança no "amigo". Em seguida, o macaco que recebeu a ferramenta tenta abrir a caixa e, desajeitado, recebe "instruções" e "incentivo" do parceiro da cela ao lado. Quando, por fim, ele consegue abri-la, degusta de imediato uma das cinco nozes disponíveis. Ao pegar a segunda noz nas mãos, olha ao redor em um momento de hesitação, o que faz com que o outro macaco cobre sua parte com uivos de indignação. Aquele que tem acesso às nozes degusta sua segunda noz e passa as outras três pela janela, em uma demonstração clara de gratidão, já que deixa uma noz a mais para o parceiro, reforçando o vínculo de confiança que foi estabelecido e possibilitando parcerias futuras.

O estabelecimento e quebra de vínculos de confiança se mostra justamente como ponto central de American Hustle, filme em que o diretor David O'Russel e o roteirista Eric Singer dialogam acertadamente com esse tema, trazendo exemplos de situações em que a confiança é estabelecida ora em momentos de extrema delicadeza, por vezes dramáticos, ora em momentos de humor irônico, por meio de situações hilárias. Da mesma forma com que os macacos foram colocados à prova, os personagens do filme estrategicamente estabelecem relações nas quais devem se entregar completamente ao outro, estabelecendo um vínculo de confiança que, por vezes, não passa de uma representação, de uma atuação que nos parece extremamente “real”. Ora, mas o que é a atuação senão um pacto de confiança que o expectador estabelece com o personagem de maneira a acreditar que este está realmente lhe contando, de alguma forma, uma verdade através da farsa?


É nesse sentido que podemos dizer que a confiança não diz respeito somente a situações verdadeiras, em que há completa honestidade. Talvez seja justamente em situações em que duas pessoas compartilham uma mentira que a confiança se mostre mais importante e vital. Através dos golpes que o casal Irving e Sydney (Christian Bale e Amy Adams, em atuações marcantes) aplicam em outros é construída a base para um relacionamento sólido e bonito, que nos é apresentado, de maneira assertiva pela fluência da narrativa, por meio de uma narração em off realizada pelos dois personagens com o objetivo de retratar os momentos iniciais do seu relacionamento.

Ao longo do filme, vamos descobrindo em cada personagem seus truques para sobreviver: um sotaque, um nome falso, um penteado encaracolado ou um extremamente elaborado para cobrir a calvície. Mas, ainda mais impactante do que os aspectos externos dos personagens é o que conseguimos perceber por meio de suas atuações. Com um detalhismo impressionante, em momentos em que vivenciam uma farsa, eles conseguem expressar, por meio da troca de olhares ou por gestos contidos, a aprovação da atuação ou a indignação pela quebra da confiança, o que, por si só, demonstra que o filme certamente possui um dos melhores elencos do ano.


É com esses truques e trapaças que se constrói American Hustle, talvez o melhor filme de David O'Russel, que possui, contudo, o defeito de parecer muito mais longo do que realmente é. De toda forma, é de maneira muito eficiente que o diretor conta-nos essa fábula baseada em fatos reais, concluindo, com sua última cena, que "a arte da sobrevivência é uma história sem fim.".
Um desfecho óbvio, mas nem por isso irrelevante.

Eder Costa

****

Comentários

Guga Pitanga disse…
O filme conta com dois pilares: uma boa ideia e um excelente elenco. Quando o elenco está na mesma sintonia, consegue até relevar momentos óbvios do roteiro ou cenas demasiado longas. É um ótimo filme, mas não leva estatueta não.

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